Enquanto o Mário se prepara para mostrar o que se sabe da macroestrutura do Universo, (coitado, com a cabeça a pensar nas compras de Natal não sei como ele vai conseguir concentrar-se...) venho chamar a atenção para um aspecto que não foi devidamente salientado no post anterior – que o que nele se diz elimina a «Energia Negra».
Donde nasce a ideia da Energia Negra? Nasce do mesmo raciocínio que o Aristóteles fez mas esquecendo que agora sabemos que a matéria não existe desde sempre e que o campo gravítico se propaga à velocidade da luz.
Esse raciocínio é o seguinte: se a matéria atrai matéria, então os corpos tendem a convergir uns para os outros, a Matéria tende a colapsar.
Para o Aristóteles, desconhecedor da Lei da Inércia, esse raciocínio conduziu à conclusão de que a Matéria, existindo desde sempre, teria de estar toda no mesmo ponto do Universo, formando uma esfera – e essa esfera onde se juntou toda a matéria do Universo teria de ser a Terra.
Esta ideia do colapso da Matéria está implícita nas equações dos modelos do Big Bang, a consequência sendo a de que a velocidade de expansão do espaço deveria diminuir ao longo do tempo – a Matéria iria «travando» a expansão, não é? Pois se a matéria atrai matéria...
(Embora as equações dos modelos pareçam ser o fruto de raciocínios independentes de quaisquer presunções, a verdade é que não são. A equações nem «têm vida própria» nem «sabem mais do que nós»; elas estão ao serviço de um modelo e este reflecte sempre, no essencial, as nossas presunções. Há inúmeras presunções não declaradas em qualquer modelo; presunções que se assumiram como inquestionavelmente válidas mas que dados posteriores mostram não o ser e aqui reside a maior dificuldade ao avanço do Conhecimento: como são não-declaradas, não são questionadas pelos novos dados e permanecem a poluir os modelos. É o caso vertente.)
Como as observações provaram que a aparente velocidade de expansão não abranda, a conclusão foi a de que teria de existir algo que contrariasse a acção do campo gravítico – e eis que nasce a famigerada «Energia Negra»! Uma energia de repulsão que compensaria exactamente a acção da gravidade em grande escala mas misteriosamente ineficiente à escala sub-galáctica.
Parece certo, não parece? Mas não está!
Como vimos, se tivermos uma esfera uniforme e isotrópica de matéria, o campo no seu centro é nulo porque uma partícula no centro é atraída em todas as direcções igualmente.
Vejamos de novo a figura do post anterior:
A partícula azul no centro da circunferência azul podemos ser nós (não se diz que a Terra é o «planeta azul»?); a circunferência azul é o nosso horizonte, a zona do Universo cuja influência podemos sentir e que podemos observar nesta altura. Estamos, para efeitos gravíticos, no centro de uma esfera onde a matéria se distribui uniformemente em escala grande; portanto, não sofremos nenhuma acção geral de contração da matéria ou do espaço (mas sofremos os efeitos das anisotropias locais, como é evidente).
Nem nós nem nenhum ponto que nós observemos. Porque a luz que nos chega de qualquer deles refere-se a um tempo em que eles se encontravam no centro gravítico de uma esfera mais pequena, tangente à esfera azul. Desenhei a laranja um caso desses.
Portanto, não deveríamos ver nenhuma tendência para colapsar. A aparente velocidade de expansão não tem nada que diminuir com o tempo. A invenção da «Energia Negra» é um erro, mesmo no modelo do Big Bang.
O leitor mais atento poderá notar que isto é assim enquanto o nosso horizonte for interior à distribuição de matéria; mas se admitirmos que esta não é infinita, chegará uma altura em que (a não ser que a matéria se desvaneça antes disso) o nosso horizonte ultrapassará o limite da distribuição da matéria. Nessa altura deixaremos de estar (graviticamente) no centro de uma esfera isotrópica de matéria e o raciocínio anterior já não se mantém.
E tem toda a razão.
Mas saberemos quando chegar essa altura porque então deixaremos de receber o CMB da zona da distribuição de matéria que o nosso horizonte ultrapassou. Como isso não acontece actualmente, temos de concluir que o nosso horizonte é interior à distribuição de matéria.
Representação esquemática do nosso horizonte. A base representa o momento da libertação do CMB, o eixo vertical é o eixo dos tempos, o topo é a secção da distribuição da Matéria no momento presente (figura da esquerda) e num momento futuro (direita). O cone azul é a representação da evolução no tempo da esfera de matéria que nos influencia. No figura da esquerda a superfície limite dessa esfera (elipse da base do cone azul) está toda contida na distribuição inicial de matéria - é a situação actual. Na figura da direita, a esfera definida pelo horizonte de um observador no futuro ultrapassa a distribuição inicial da matéria - esse observador não receberá CMB do lado onde o seu cone se extende para além da distribuição de matéria.
A distribuição de matéria vai-se contraindo ao longo do tempo porque as camadas exteriores vão colapsando; mas esse movimento é muitíssimo mais lento que o crescimento do cone da influência gravítica, que se faz à velocidade da luz
Em conclusão, a invenção da Energia Negra resulta de ainda ninguém ter percebido que é nulo o campo em qualquer ponto duma distribuição uniforme de matéria cujo horizonte seja interior a essa distribuição e que essa é a nossa situação, consequência de nem a idade da Matéria nem a velocidade de propagação do campo gravítico serem infinitos.
Aqui têm uma coisa quase trivial mas que são as primeiras pessoas a saber desde que a humanidade existe.
“Vamos começar a história do Universo por aquele momento cujo ocorrência nos é sugerida pelas características do Ruído Cósmico de Fundo: um momento em que a matéria se distribui de forma absolutamente isotrópica e uniforme”; faço uma pequena pausa para dar ao momento a solenidade que ele merece;
“Admitamos que a matéria se encontra toda na sua forma mais simples, Hidrogénio, cujo átomo se compõe de 1 protão e 1 electrão. Primeira questão: a que forças, a que campo, está sujeito cada átomo?”
“Bem, já estás a meter água... falta-te definir muitas coisas... se o Universo fosse assim tão simples, colapsava devido à atracção gravítica. Para evitar esse colapso é que o Einstein inventou o universo fechado, num espaço a 4 dimensões, mas essa solução é instável. A alternativa é a existência de algo que contrarie a atracção gravítica. E isso tem de estar incluído no teu modelo.”
“Como uma energia negra? Bem, já estás a meter água com esse raciocínio pouco subtil...” Luísa solta logo uma gargalhada, o que manifestamente irrita o Mário. Apresso-me a esclarecer:
“O Big Bang trouxe um progresso ao nosso entendimento do Universo, a ideia de que este Universo não existe desde sempre. Se a matéria existisse desde sempre, o que dizes estaria certo; mas não é assim, e o Ruído Cósmico de Fundo está aí para nos dizer que há um momento especial, um momento em que a matéria surge.”
“E o que é que isso altera?”
“Se a matéria tem uma idade que é finita, e se o campo se propaga à velocidade da luz...”
“Ahh, estou a entender-te”, interrompe-me o Mário, “o campo que actua em cada partícula é apenas o produzido numa esfera com um raio igual à idade da matéria em anos-luz... e como a distribuição é isotrópica, a partícula é atraída igualmente em todas as direcções; logo, as forças que actuam sobre ela anulam-se! As partículas estão em equilíbrio, não se movem para lado nenhum. É boa, não tinha pensado nisso, o campo de uma distribuição uniforme é nulo em toda a parte! Era isso que querias concluir?”
“Exactamente Mário! Como a matéria tem uma idade, e só podemos observar até uma distância igual à idade da matéria em anos-luz, o que se passa para além da esfera que essa distância define é irrelevante, por agora. Mais: devemos presumir que essa nossa esfera de observação é uma parte ínfima do Universo, e não podemos pensar que todo o Universo é igual ao bocadinho dele que observamos; seria como um aldeão presumir que todo o Mundo é igual ao vale onde vive e donde nunca saíu.”
representação esquemática duma distribuição uniforme e isotrópica de partículas materiais (pontos negros); a circunferência azul marca o Horizonte da partícula azul no seu centro (raio igual à idade da matéria em anos-luz); a partícula azul é igualmente solicitada em todas as direcções(setas vermelhas); para fora da circunferência azul, o Universo é desconhecido
“Até posso aceitar isso, mas então tens um problema!” um sorriso maroto alegra a face do Mário “ Se o campo é nulo em toda a parte, se não há energias negras nem Inflacção, então nenhuma partícula se move e esse estado perpetua-se indefinidamente. Assim, como se formam as galáxias?”
“Estás a presumir uma coisa que eu não disse: eu não disse que os átomos estavam parados. Nesse instante particular, a distribuição é uniforme e isotrópica, mas os átomos têm movimento.”
Mário pensou um pouco. “Podem ter movimento mas chocam uns com os outros e a consequência é que a densidade média de átomos não sofre alteração significativa. A Inflação é indispensável à formação das estruturas materiais porque ela amplifica bruscamente as mínimas flutuações que existiram num dado instante no plasma inicial; depois de amplificadas pela Inflação, já não podem regredir, pelo contrário. Num processo lento de expansão, essas flutuações nunca passariam disso mesmo, de insignificantes flutuações. Sem Inflação não existiria nenhuma estrutura da matéria no universo!”
“Cuidado com as presunções Mário. Sabes qual é a densidade média de átomos no Universo?”
“De átomos, dizes tu? Pensando no átomo de Hidrogénio... ora a densidade da matéria é de cerca de ... eu não sei os últimos valores, quando estudei falava-se de 2x10-31g/cm3...” o Mário fecha os olhos por uns instantes, “ creio que ... cerca de 1 átomo por 10 m3... Será?”
“Um átomo por 10 m3?? Isso é muitíssimo menos que o vácuo que as bombas de vácuo são capazes de produzir, enganaste-te nas contas Mário!!” A Luísa espanta-se, é natural, poucas pessoas têm ideia de como é rara a matéria.
“Está certo Mário, é isso mesmo!” a Luísa empalidece, a face expressa incredulidade. “É infima a percentagem de espaço ocupada com a matéria. O valor mais recente para a densidade do Universo, de acordo com os actuais modelos, determinado pela missão WMAP, é o dobro disso – cerca de dois átomos, ou uma molécula, de hidrogénio em cada 10 m3.”
“Pois, eu sabia que era um valor muito baixo, embora nunca tivesse pensado em termos de átomos por m3...”
“E sabes qual é o percurso livre médio com esta densidade de matéria?”
“Percurso livre médio? O que é isso?”
“É a distância média que uma molécula percorre antes de chocar com outra. Não sei mas posso fazer as contas...”
“Não vale a pena”, interrompo, “eu já as fiz; é de cerca de 1000 anos-luz, para o diâmetro que as moléculas têm hoje.”
“Isso é hoje, mas na altura do CMB as distâncias eram muito menores, ou as moléculas eram muito maiores, segundo a tua teoria; já consideraste isso?”
“Já; para uma variação de escala de 1000 vezes, como considera o Big Bang, o percurso médio é de dez milhões de quilómetros, com a unidade de comprimento atómica da altura; mesmo para uma variação de escala de 100000 vezes, ainda é de dez metros. Portanto, a tua presunção de que estaríamos perante um gás condenado a manter-se uniforme em consequência dos choques entre moléculas está errada.”
“Seja como fôr, não vejo como uma distribuição uniforme de moléculas poderia, por si só, chegar à distribuição actual. Com choques ou sem eles, sem uma fase de Inflação não há hipótese de explicar a imensa macroestrutura actual do Universo.”
“Vocês já falaram várias vezes dessa macroestrutura do Universo mas eu não sei ao certo a que se referem; a matéria organiza-se em estrelas e estas em galáxias, é isso?”
“É muito mais do que isso.”